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Ferramentas

 

 
Uma corrente contrária à automatização, silenciosa, porém persistente, flui. É a atração pelo físico, pelo tátil e pelo que pode ser manipulado diretamente. Observamos isso no ressurgimento do artesanato, na celebração da produção "lenta" e um fascínio peculiar pela mais elementar das tecnologias humanas: a ferramenta manual. Esse fascínio é mais do que uma estética retrô; ele sugere um anseio mais profundo, talvez filosófico. Gilbert Simondon distinguiu dois modos de acesso ao objeto técnico:

O modo de acesso do indivíduo ao objeto técnico é menor ou maior; O modo menor é o modo apropriado para o conhecimento da ferramenta ou do instrumento; é primitivo, mas adequado a este nível de existência da tecnicidade na forma de ferramentas ou instrumentos; torna o homem em um portador de ferramentas, de acordo com uma aprendizagem concreta, uma espécie de simbiose instintiva do homem e do objeto técnico empregado em um determinado meio, de acordo com a intuição e o conhecimento implícito, quase inato. O modo maior pressupõe a tomada de consciência das formas de funcionamento: é politécnica. A Enciclopédia de Diderot e D'alembert ilustra a passagem do menor para o modo maior. (MEOT, xvi)
 
O "modo menor", secundário, é aquele da unidade intuitiva e incorporada por quem manipula a ferramenta: o carpinteiro sentindo a fibra da madeira através de uma plaina, o jardineiro conhecendo o solo através de uma pá. O "modo maior", principal, exemplificado pelo projeto iluminista da Enciclopédia, é abstrato, analítico e sistêmico. Ele compreende a ferramenta como algo externo, como parte de uma vasta rede de princípios e processos. A história da industrialização pode ser lida como o triunfo do modo principal: o sistema de máquinas absorve a ferramenta individual, e o ser humano torna-se um operador, um supervisor ou é completamente removido do processo. A máquina, e não a pessoa, torna-se a verdadeira "portadora da ferramenta".

No entanto, se o modo principal venceu, por que o modo secundário causa estranheza? A resposta reside em um profundo sentimento de deslocamento e um desejo nostálgico de recuperar essa "simbiose instintiva". Essa nostalgia não é nova. Em julho de 1955, no auge do poderio industrial americano, a revista Fortune publicou um ensaio fotográfico de Walker Evans intitulado Beauties of the Common Tool. Evans apresentou ferramentas manuais comuns — uma chave inglesa, uma tesoura de estanho, um abridor de caixas — não como meros implementos, mas como objetos de "elegância, franqueza e pureza". Ele celebrou suas "boas formas, claras e 'não projetadas'", argumentando que uma loja de ferragens era uma espécie de "museu excêntrico".

Essa era uma elegia ao modo secundário (ou minoritário), uma estetização consciente do mundo do portador de ferramentas, justamente quando este estava sendo eclipsado por sistemas maiores e mais impessoais. Hoje, essa nostalgia evoluiu da apreciação passiva para a reinvenção ativa. Ela se manifesta não na rejeição da tecnologia, mas em sua aplicação deliberada para ressuscitar e refinar as ferramentas arquetípicas do modo minoritário. Esse movimento é uma tentativa de preencher a lacuna, de restabelecer uma simbiose moderna.

Considere o machado, uma ferramenta com uma história de grande amplitude. Seu redesenho não é uma releitura. O inventor finlandês Heikki Kärnä passou 15 anos desenvolvendo o Vipukirves, um machado redesenhado que usa um mecanismo de alavanca. Sua inovação reside em multiplicar a força de corte por meio de uma mudança inteligente no centro de gravidade, tornando a tarefa de cortar lenha mais eficiente, mas ainda mantendo o lenhador em diálogo físico direto com a ferramenta e o material.

É o modo menor, ampliado!

Da mesma forma, a chave inglesa, um item básico do portfólio da Evans, está sendo reinventada com materiais contemporâneos. A CarbonLite Tools produz chaves de boca de fibra de carbono que são "incrivelmente leves" — um conjunto de cinco pesa apenas 190 gramas. Enquanto os dentes de aço temperado agarram a porca, o corpo de fibra de carbono altera o peso e a sensação na mão. Isso não é uma mudança em direção ao descartável, mas sim em direção a um novo tipo de ferramenta: mais leve, talvez mais pessoal, traduzindo a função ancestral por meio de um léxico de materiais modernos. 

De forma bastante poética, os designers revisitam a própria origem das ferramentas. O projeto Man Made, de Ami Drach e Dov Ganchrow, consiste em recriar machados de mão pré-históricos de sílex e equipá-los com cabos impressos em 3D. Cada cabo é concebido para uma tarefa específica — uma lança, um cortador, uma ferramenta de escavação — transformando a pedra ancestral de uso geral numa série de instrumentos especializados. O projeto conscientemente "une as duas tecnologias de fabricação mais distantes temporalmente: a lascagem de sílex e a impressão 3D". Não se trata de mera replicação; é uma ponte conceitual. Utiliza as ferramentas do modo principal (escaneamento 3D, design digital, impressão em polímero) para reanimar o objeto mais primordial do modo secundário, obrigando-nos a contemplar a continuidade do que é manuseado ao longo dos milênios.

O que esses projetos significam? Não são rejeições ao progresso. Em vez disso, representam um desejo coletivo de curar a ruptura identificada por Simondon. A era da máquina não apenas substituiu o trabalho; ela nos aliena do "aprendizado concreto" e da "simbiose instintiva" do modo secundário. A nostalgia pelas ferramentas, da fotografia de Evans aos machados redesenhados de hoje, é um sintoma dessa alienação. A reinvenção dessas ferramentas é uma busca por uma nova síntese.

Nessa perspectiva, o retorno à ferramenta é um retorno ao eu como homo faber, um criador cuja inteligência se estende e se expressa através do mundo físico. A proposta não é voltar no tempo; é tentar levar adiante o modo minoritário, encontrar um lugar para o portador da ferramenta na era politécnica. É como se estivéssemos escrevendo um novo capítulo na enciclopédia iluminista — um que busca recuperar o conhecimento tátil da mão, não apenas o conhecimento abstrato do sistema. As belezas da ferramenta comum, afinal, são as belezas de uma condição humana fundamental da qual não é possível abrir mão.


 

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