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Gênese relacional homem/mundo


The saturation of the magic phase leads to a bifurcation into technics and religion, which further bifurcate into theory and practice, ethics and dogma. Each bifurcation produces one theoretical part that tries to comprehend beings from a perspective above the unity (for example, religion, science), and another practical part that attempts to grasp beings from a perspective below the unity (for example, technics, dogma).  - Yuk Hui in Art and Cosmotechnics, p. 188

A começar por um terremoto que eclodiu a “pangeia” do pensamento mágico, na alvorada do conhecer humano, surgiram as modalidades primárias do pensamento: religião, técnica e estética. E as modalidades secundárias: pensamento teórico e pensamento prático. O saber teórico proveniente das técnicas é operativo, enquanto o saber teórico proveniente da religião é o contemplativo.

O diagrama congloba várias concepções, sendo uma delas a da gênese do pensamento e das teorias do conhecimento. Contém em si um germe de mudança da epistemologia, uma epistemologia anterior a toda a lógica [1], aos métodos de pensamento ou raciocínio, incluindo os métodos de razão discursiva de Charles Sanders Peirce: dedução, indução e (discretamente) abdução [2]. Se a dedução é a maneira de contemplar a realidade total (B é derivado de A); e a indução é a maneira de criar um controle operativo sobre a mesma (B é inferido de A), como classificar a abdução (A é explicado por B)? Por abdução podemos supor uma tentativa de acoplar dedução e indução? Ou abdução é literalmente uma "dedução intuitiva"? Ou seria a abdução a formalização de um conhecimento por meio de uma dedução lógica desencadeada por uma intuição? A parte superior do diagrama invoca a seguinte premissa: enquanto a filosofia cuida da harmonia entre ciência e ética, a estética trata da harmonia entre religião e técnica (o elemento mais primitivo, mais antigo até que a religião).

Tendo isso em vista, podemos agora analisar a parte inferior do diagrama, que é o que nos interessa agora. Começa-se por um pensamento primitivo original que não concebia, em sua visão de mundo, a separação, por exemplo, entre figura e fundo. Ou seja, havia uma unidade primordial e tão somente depois que os objetos criados pela técnica passaram a ser contrastados com o "fundo infinito" da religião. Nota-se que a única forma de o pensamento moderno reunir figura e fundo é por intermédio de uma estética composicional, a qual desdobra-se em arte sacra e arte profana. Mas a união parcial não resolve o problema da cisão primordial. Por exemplo, um objeto estético não é um fim em si mesmo; é apenas um índice, um apontamento em direção a uma visão de mundo primitiva; é, portanto, o resquício do pensamento mágico primitivo. Os pensamentos técnico e religioso, então, são como lembranças de uma unidade mágica perdida. Pode-se dizer, nesse sentido, que religião e técnica são "mídias", porque mediam o homem e um mundo perdido.

Em um dado momento, a falha [3] de um gesto específico defasou a unidade em duas partes: a técnica, simbolizada pela figura; e a religião, simbolizada pelo fundo. O pensamento técnico é habitado por figuras, elementos, partes. Já o pensamento religioso se vale do fundo, do universal, do todo. Segundo o diagrama, podemos inferir que o pensamento técnico é a soma do conceito (teoria, indução) com a eficácia (prática, moral prática). Se para Hegel a religião e a arte eram etapas para se atingir o pensamento filosófico superior, para Simondon, o caminho era mais sinuoso: o pensamento filosófico seria a resolução temporária, por meio da estética, da polaridade entre dois modelos teóricos gerados pela religião e a técnica.

O filósofo francês fez importantes reflexões sobre a epistemologia sem desvalorizar a ontologia. O conceito é um modo de conhecimento, assim como a ideia, a intuição e os dados empíricos da percepção e da sensação. No campo do racionalismo, é possível contrapor duas axiomáticas: a ideia, mais universal, e o conceito, mais ligado às categorias. A ideia é realista, universalista, produto da mente de Platão; o conceito é nominalista, particularista, produto da mente de Aristóteles. E o conhecimento por intuição, seria possível? Um conhecimento apriorístico, sem a mediação dos aparelhos sensoriais e da razão pura? Sim, se substituirmos o númeno pelas relações do mundo. A intuição seria então o conhecimento dos processos genéticos, das relações ocorridas nos fenômenos, nas mudanças de estado da cristalização, por exemplo. O conhecimento por intuição celebra a formação prolongada e evita a gênese por acumulação. Em suma, a intuição é o conhecimento dos processos genéticos. É uma intuição que não deixa também de ser reflexiva.

[1] SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. [s.l.]: Editions Jérôme Millon, p. 92, 2005. Cette méthode peut paraître très primitive : elle est en effet semblable à celle des «Physiologues» Ioniens ; mais elle se présente ici comme postulat, car elle vise à fonder une épistémologie qui serait antérieure à toute logique. Este método [para se indicar uma epistemologia da relação] pode parecer muito primitivo: é, com efeito, semelhante ao dos "fisiologistas" jônios; mas aparece aqui como um postulado, pois visa estabelecer uma epistemologia que é anterior a toda a lógica.

[2] In informal terms, abductive reasoning involves inferring the best or most plausible explanation from a given set of facts or data. This volume presents new ideas about inferential and information-processing foundations for knowledge and certainty. In JOSEPHSON, John R.; JOSEPHSON, Susan G. (orgs.). Abductive Inference - Computation, Philosophy, Technology. Cambridge University Press, 2011.

[3] A falha de um gesto técnico incompleto? Na técnica gramatical, um modo verbal "optativo", que expressa esperança ou desejo? Segundo Simondon, [e]n même temps que la virtualité, l'échec de l'action technique fait découvrir le correspondant subjectif de cette virtualité, à savoir le possible comme optatif; l'ensemble de schèmes est une réalité incomplète. In SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. [s.l.]: Aubier-Montaigne, p. 203, 1969.

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