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Redes


Simondon pondera sobre a questão das redes, mas não sem recair em aporias (no bom sentido). Primeiro, há o problema de terminologia. Que tipo de rede? As redes das infraestruturas (réseau)? Ou as redes da visualização óptica (réticule)? Ou, como sempre se deve inferir em se tratando do pensamento simondoniano, uma mistura das duas? Mas vamos insistir em usar o termo reticularidade, por diversos motivos: primeiro, por remeter à química [1], disciplina tão estimada pelo filósofo francês; segundo, por remeter à indústria gráfica, à ciência da imagem. E, por último, por se distanciar da hegemonia excessiva da palavra "rede", na acepção das redes de telecomunicações, hoje associadas indelevelmente às redes de informação e, claro, às inefáveis redes sociais. 

Tecnólogos de diversos calibres costumam afirmar que as redes telemáticas facilitam dois aspectos: comunicação e tomada de decisão. Mas há, além disso, uma subjetividade subjacente às redes numéricas, que vai muito além das infraestruturas técnicas. De qualquer forma, podemos dizer que as redes têm duas características: os protocolos como objetos performativos e a sua velocidade de ganho de escala. Há também um terceiro elemento inerente: a coordenação por escala, a qual é acionada quando o ganho escalar implica em extremo overhead. Mas o importante é apontar que, quanto mais um ponto faz a extração de valor a partir de sua topologia, mais a rede perde o valor global (vide The Stacks). Nesse cenário, a verdadeira responsabilidade dos agentes seria preservar a memória não terceirizada, a introspecção e a noodiversidade (termo sugerido por Bernard Stiegler). Sobre uma possível metáfora das redes como jardins (fonte? Certamente não é Comenius), precisamos nos perguntar de que jardim estamos tratando: se jardins públicos ou o Nouveau Trianon de Luís XV? 


Primeiro é necessário dizer que a reticularidade é um contraponto ao hilomorfismo, em que há uma separação fundacional entre matéria e forma quando da "preparação" de uma substância. A noção de reticularidade propõe um jogo de contrastes entre figura (forma) e fundo (matéria), na qual uma coerência (essa coerência pode ser visual, conceitual, estrutural etc.) implica numa certa reciprocidade entre os dois termos. Entretanto, reconstrói a noção a partir de duas teorias: a da cibernética e a da Gestalt. Dentro do âmbito da cibernética, por exemplo, o ato de comparar e contrastar a figura e o fundo se dá com o objetivo de conseguir alguma medida de coerência, e isso é precisamente o que se chama de contextualização (ou distinção, mas essa é uma outra história). Antes de tudo, é uma estratégia para se conseguir uma mensuração, uma medida quantificadora. E, no âmbito da Gestalt, dentre as sete leis básicas que embasam a escola psicológica, Simondon considera a relação figura-fundo, ilustrada pela ilusão de óptica do vaso de Rubin, a mais conveniente, por carregar em si outras características, tais como proximidade, simetria, similaridade. 


A rede, na concepção de Simondon, não tem a forma de matriz, mas de pontos, como nas retículas; há de se fazer, de algum modo, a distinção entre figura e fundo, e a retícula é a estratégia ideal. As retículas representadas em alguns quadros de Sigmar Polke, por exemplo, podem ser usadas para ilustrar a noção de figura e fundo segundo essa concepção. O pintor estadunidense nos permite fazer uma reflexão não apenas sobre a lei da Gestalt, mas também sobre a noção geral de rede de Simondon, isso se não for inoportuno inserirmos na discussão alguns termos do universo da impressão gráfica. Polke se inspira em uma técnica chamada raster (ou bitmap, que significa mapa de bits em inglês), que são imagens que contêm a descrição de cada pixel, em oposição aos gráficos vetoriais. Há dois tipos básicos: as retículas estocásticas e as lineares. No primeiro, não há diferença no tamanho dos pontos, que são distribuídos de forma aleatória. Na segunda, desconsiderada por Polke, os pontos são de tamanhos diferentes e são dispostos em linhas. Mas há um terceiro tipo, as retículas híbridas, que são uma conjunção das duas anteriores, incluindo a aleatoridade (imprevisibilidade) e a diferença de tamanho dos pontos, característica das redes informacionais, nas quais os nós têm pesos diferenciados de acordo com o quantidade de suas conexões. 


No processo híbrido das retículas gráficas é possível capturar visualmente algumas zonas de intensidade, principalmente quando realizamos um zoom óptico. Há intensidades que, em contraste, nos dão a noção de volume e profundidade geométrica, como se fosse uma composição de figura e fundo primitiva, resultado daquela técnica usada nos fundos semi-estáticos representando a paisagem que vemos em antigos desenhos animados. A palavra-chave, nesse caso, é intensidade. Estamos em um plano muito além da quantidade da cibernética e da qualidade da Gestalt [2]. A intensidade como fator de informação, como veículo de informação, ao invés de números e propriedades. Tome-se o mapa de calor, por exemplo. É eficiente desde o detectar de ilhas de calor em regiões urbanas com alta incidência de superfícies com baixo índice de reflexão (albedo) até a visualização da atuação de jogadores em um campo de futebol.


A reticulação também está presente na ética, ao pensarmos em como as ações ganham uma amplificação mais do que esperada por meio do fenômeno da propagação. É quase como um incêndio de proporções gigantescas que se inicia com uma mera bituca de cigarro. Agora, o pano de fundo é a natureza (physis), a mais bem acabada reserva de potências. Todo ato humano, portanto, deve ser pesado tendo como referência a natureza [3]. Temos que nos preocupar com todas as consequências de nossas ações, pois elas são amplificadas tanto na rede de relações humanas, como nos ecossistemas. Atos são conexões, e conexões são atos. Assim como a cristalização mineral é um processo contínuo de ampliação a partir de uma solução supersaturada, a cristalização das relações sociais dependem de atos isolados. Tal processo é incluso na operação de transindviduação, que merce um post à parte.

[1] A reticulação polimérica é um processo que ocorre quando cadeias poliméricas lineares ou ramificadas são interligadas por ligações covalentes, um processo conhecido como crosslinking ou ligação cruzada, ou seja, ligações entre moléculas lineares produzindo polímeros tridimensionais com alta massa molar. Com o aumento da reticulação, a estrutura se torna mais rígida. A vulcanização da borracha é um exemplo de ligação cruzada. verbete Reticulação. In: Wikipédia, a enciclopédia livre.

[2] SIMONDON, Gilbert . “The Position of the problem of ontogenesis”. Parrhesia, número 7, pp. 4-16, 2009. The notion of form must be replaced by that of information, which presupposes the existence of a system in a state of metastable equilibrium that can individuate itself; information, unlike form, is never a unique term, but the signification that springs from a disparation. The ancient notion of form, such as provided by the hylomorphic schema, is too independent of any notion of system and metastability. That which Gestalt theory provided contains, on the contrary, the notion of system and is defined as the state towards which the system tends when it finds its equilibrium: it is the resolution of a tension. Unfortunately, an all too summary physical paradigmatism caused Gestalt theory to only consider the state of stable equilibrium as a system state of equilibrium capable of resolving tensions: Gestalt theory was unaware of metastability. We would like to take up Gestalt theory and, through the introduction of a quantum condition, show that the problems posed by Gestalt theory cannot be directly resolved using the notion of stable equilibrium, but only by making use of the notion of metastable equilibrium. The Good Form is no longer the simple form, the pregnant geometric form, but the signifying form, that is, that which establishes a transductive order within a system of reality that contains potentials. This good form is that which maintains the energy level of the system, that which conserves its potentials by rendering them compatible: good form is structure of compatibility and viability, it is the dimensionality that is invented and according to which there is compatibility without degradation. The notion of Form therefore deserves to be replaced with that of information. In doing so, the notion of information must never be reduced to signals or to the supports or carriers of information in a message, as the technological theory of information tends to do, a theory that was initially abstracted from transmission technologies. The pure notion of form must therefore be saved two times from an all too summary technical paradigmatism: first, in relation to classical culture, the notion of form must be saved from the reductive manner the notion was used in the hylomorphic schema; and a second time, in order to save information as signification from the technological theory of information in modern culture, with its experience of transmission through a channel. For indeed the same aim is found in the successive theories of hylomorphism, Good Form, and information theory: the discovery of the inherence of significations to being; we will attempt to find this inherence in the operation of individuation. (traduzido para o inglês por Gregory Flanders).

[3] SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Editions Jérôme Millon, 2005, p.335. Les acte sont en réseau dans la mesure où ils sont pris sur un fond de nature, source de devenir par l'individuation continuée. [Os atos estão em rede na medida em que são tomados de um fundo de natureza, a fonte do processo de devir de uma individuação continuada]. 

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