Pular para o conteúdo principal

Embriogênese

 


Ontem passei o dia rabiscando com lápis de cera sobre folhas de papel A4, tentando transpor para um diagrama a Psicologia dos Sentimentos de Gilbert Simondon. Começa-se por uma forma do indivíduo dividida em três partes: consciente, inconsciente e a camada de subconsciência afetivo-emotiva. As ações advém do inconsciente; representações delas afloram no consciente. Mas o que está no comando é a camada de subconsciente que, além de intermediar as duas, articula os fluxos de carga pré-individual ao indivíduo. Ficamos sabendo que tais fluxos são primeiramente controlados pelo bloco de afecções, que espiritualiza-se no processo, tornando-se "estado autoentretido" na forma de emoção. Nessa condição, a emoção precisa extravasar-se no coletivo, mas para tanto precisa recorrer ao bloco de ações, que, na verdade, não é bem um bloco, mas um invólucro desse sistema, podendo operar internamente também ("... se um sentimento pode causar uma autotransformação por intermédio das ações e pensamentos que ocasiona, ou se, nesse discurso sobre a ‘atuação’ de um sentimento, há algo de impróprio e dito  não muito a sério, como se se dissesse que a laminação de uma chapa ‘causa’ seu adelgaçamento, ou uma extensão das nuvens o encobrimento do céu ..." - Musil). As folhas de papel A4 vão ficando demasiadamente coloridas, cores extravasam-se, misturam-se; contornos borram-se. Não é possível diagramatizar tal psicologia. O bloco da ação, anteriormente sólido, é substituído pelo das sensações, porque são fenômenos de um pluriverso que, em movimento de tropismo, condensa-se em percepções. Assim como o bloco de afetos, por meio de devir, condensa-se em emoções. Tudo é parte de um programa de espiritualidade. Foi assim que, ao me deparar com o vídeo de biologia digital especulativa criado por Sage Jenson, pensei ter encontrado um diagrama semovente coerente com o projeto de Simondon.  

Postagens mais visitadas deste blog

Transindividual

     A obra de Simondon recusa formalizações e diagramas, mas há momentos em que a complexidade conceitual contrapõe-se a essa força. Sentimentos, sensações, prazer e vontade … Robert Musil também já sabia da dificuldade de descrever tais fenômenos interiores. No caso do filósofo francês, o indivíduo atualiza-se graças a tensão promovida por eles, buscando um tipo de elevação, pois  [é] o respeito dessa relação do individuado e do pré-individual que é a espiritualidade [375]. Não é possível atingir a transcendência sem resolver problemas da imanência, dispostos no ser coletivo. Na vida prática, começa-se por resolver o jogo entre ação e percepção, a começar pela propriocepção, a apreensão e "incorporação" da res extensa .  Na vida íntima, o jogo é entre emoção e afetividade, explícito na vivência da  solitude . Após tais resoluções, o indivíduo devém um incremento, sendo os desafios agora coletivos. É preciso resolver, de modo transversal, a problemática e...

Neotenia

  É de fato intrigante o modo como Simondon trabalha com a ideia de neotenia, retirada da biologia do desenvolvimento. Em resumo, pode-se explicá-la (na biologia) com a famosa frase de Ernst Haeckel "a ontogenia recapitula a filogenia", ou como embriões repetem a evolução de gerações anteriores, ou como adultos mantém traços de sua juventude em fase de reprodução. No mundo animal, a ideia é ricamente ilustrada com o Axolotl , o peixe andarilho, uma salamandra neotênica ( ver imagem acima ). O filósofo anexa (no sentido de fazer o nexo, rapport ) a ideia com as classes de individuação: física, vital e psíquica; para ele, a planta contém em si a individuação limítrofe dos minerais, bem como os animais retém traços de plantas no processo de individuação ( movimento nástico e/ou tropismo, por exemplo? – percepção e ação; movimento e conhecimento: díades coordenadas pela afeto-emotividade ):  Segundo essa maneira de ver, a individuação vital viria inserir-se na individuação físic...

Redes

Simondon pondera sobre a questão das redes, mas não sem recair em aporias (no bom sentido). Primeiro, há o problema de terminologia. Que tipo de rede? As redes das infraestruturas ( réseau )? Ou as redes da visualização óptica ( réticule )? Ou, como sempre se deve inferir em se tratando do pensamento simondoniano, uma mistura das duas? Mas vamos insistir em usar o termo reticularidade, por diversos motivos: primeiro, por remeter à química [ 1 ], disciplina tão estimada pelo filósofo francês; segundo, por remeter à indústria gráfica, à ciência da imagem. E, por último, por se distanciar da hegemonia excessiva da palavra "rede", na acepção das redes de telecomunicações, hoje associadas indelevelmente às redes de informação e, claro, às inefáveis redes sociais.  Tecnólogos de diversos calibres costumam afirmar que as redes telemáticas facilitam dois aspectos: comunicação e tomada de decisão. Mas há, além disso, uma subjetividade subjacente às redes numéricas, que vai mu...